Falha, mas justo: O sistema de saúde brasileiro alcança os pobres
On Setembro 25, 2021 by adminApesar dos seus muitos problemas, o sistema de saúde pública brasileiro renovado trouxe cuidados de saúde de qualidade a milhões de habitantes mais pobres, aos quais antes eram negados até mesmo os cuidados básicos. Claudia Jurberg relata como os cuidados primários de saúde estão desempenhando um papel essencial.
Até os anos 70, os brasileiros costumavam brincar que tinham que morrer antes que as autoridades prestassem qualquer atenção a eles. Dr Hugo Coelho Barbosa Tomassini lembra como eles costumavam ter uma “secretária da morte” em tempo integral para administrar funerais na cidade de Niterói, onde ele já foi secretário municipal de saúde, mas apenas uma unidade de saúde para cuidar dos vivos.
Muita coisa mudou desde então. Enquanto longas filas de espera nas emergências hospitalares, leitos derramados em corredores, equipamentos ultrapassados e com mau funcionamento e uma escassez de médicos e remédios no meio rural continuam sendo queixas comuns, em outro nível, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido um sucesso notável.
A visão de um sistema que proporcionasse “saúde para todos” surgiu no final da ditadura militar iniciada em 1964 e durante os anos de oposição política que foi, em grande parte, enquadrada em termos de acesso à saúde. Esta luta culminou na Constituição de 1988, que consagrou a saúde como um direito dos cidadãos e que exige que o Estado garanta o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde.
Foi um compromisso dramático com os ideais da declaração Alma-Ata de 1978 de “saúde para todos”.
Sob uma reforma sanitária posterior, em 1996, o Brasil estabeleceu um sistema de saúde baseado no acesso universal descentralizado, com os municípios oferecendo atendimento de saúde abrangente e gratuito a cada indivíduo necessitado financiado pelos estados e pelo governo federal.
A chave para essa estratégia foi a atenção primária à saúde. Hoje, a atenção primária de saúde continua sendo um dos principais pilares do sistema público de saúde neste país de 190 milhões de pessoas.
Promover a saúde, prevenir doenças, tratar doentes e feridos e combater doenças graves; estes são os pilares do sistema público de saúde, segundo a enfermeira Maria Fátima de Sousa, doutora em saúde e ciência e pesquisadora da Universidade de Brasília.
Cerca de 70% da população brasileira recebe atendimento desse sistema, diz de Sousa, enquanto o restante – aqueles que podem se dar ao luxo de evitar as filas e inconvenientes do sistema público – opta pelo atendimento privado. De Sousa diz que antes da “revolução da saúde” brasileira uma proporção muito maior da população era excluída.
“Foi um período em que as autoridades não reconheceram a saúde como um direito. A maioria da população tinha pouco ou nenhum acesso aos serviços de saúde. O acesso era apenas para aqueles que tinham um cartão do plano público de saúde”, diz de Sousa, referindo-se ao antigo sistema.
Todos os três níveis de governo no Brasil – federal, estadual e municipal – trabalharam duro para incentivar os pobres a usar e se beneficiar do sistema de saúde através de iniciativas, como o Programa Saúde da Família e através da implantação de trabalhadores auxiliares de saúde ou agentes de saúde trabalhando com os pobres.
Criado em 1994, o Programa Saúde da Família – principal estratégia brasileira de atenção primária à saúde – busca oferecer uma gama completa de cuidados de saúde de qualidade às famílias em suas casas, nas clínicas e nos hospitais.
Hoje, 27 000 equipes de Saúde da Família estão ativas em quase todos os 5560 municípios brasileiros, cada uma atendendo até cerca de 2000 famílias ou 10 000 pessoas. As equipes de Saúde da Família incluem médicos, enfermeiros, dentistas e outros profissionais de saúde. De Sousa diz que os recursos anuais para a atenção primária de saúde aumentaram nos últimos 13 anos para cerca de US$ 3,5 bilhões, com US$ 2 bilhões desse dinheiro dedicados ao programa Saúde da Família, de um orçamento geral de saúde do governo de cerca de US$ 23 bilhões.
Niterói, com uma população de 475 mil habitantes no estado do Rio de Janeiro e a apenas 13 quilômetros da cidade do mesmo nome, é apenas um exemplo de uma cidade que transformou sua atenção pública de saúde nos últimos 20 anos. Segundo Tomassini, “após a conferência Alma-Ata, Niterói elaborou um plano de saúde para proporcionar acesso universal de forma descentralizada – o oposto do que existia no passado”. Um punhado de outros municípios brasileiros também começou a estabelecer serviços de saúde primários na época.
Em Niterói, foram criadas unidades de saúde em áreas que antes não possuíam serviços de saúde. Hoje, a clínica de saúde em Itaipu, bairro de Niterói, é um bom exemplo de como funciona o sistema de atenção primária à saúde no Brasil. Mais de 62 mil pessoas de Itaipu e 11 bairros do entorno são ali tratadas para queixas comuns, como doenças parasitárias, diabetes e hipertensão.
Dra. Maria das Graças Vieira Esteves, diretora da clínica há 11 anos, diz que as 23 equipes de Saúde da Família de Niterói são parte essencial do sistema de saúde do Brasil. “Inicialmente, eu não acreditava que o programa Saúde da Família pudesse ser eficaz, mas aos poucos vi que eles estavam fazendo um trabalho maravilhoso e obtendo resultados”, diz ela. “Em Itaipu, as gestantes comparecem a dez consultas pré-natais. Essa abordagem contribuiu para a queda das taxas de mortalidade infantil”
A participação da comunidade é fundamental para o sucesso do programa. “Desde 2004, na última terça-feira de cada mês, há reuniões na clínica com a participação de membros da comunidade, incluindo representantes da igreja, ONGs e escolas”, diz Vieira Esteves. “Nós sempre ouvimos a comunidade e suas necessidades”. Esta contribuição é passada ao Conselho Municipal de Saúde de Niterói, que é então responsável por implementar medidas para atender às necessidades de saúde de todos os seus constituintes. Vieira Esteves diz que os principais desafios são convencer as pessoas de que o sistema pode funcionar em seu benefício e persuadir as autoridades a dedicar mais dinheiro aos cuidados de saúde primários.
Após duas décadas de funcionamento, o sistema nacional de saúde do Brasil ainda enfrenta problemas significativos – não menos importante, a dupla carga de doenças infecciosas e o aumento do risco de doenças não transmissíveis muitas vezes associadas ao envelhecimento da população dos países afluentes. “O Brasil está passando por uma transição epidemiológica”, diz Tomassini.
“Embora sejamos um país em desenvolvimento, nosso povo está em risco de contrair câncer e traumas resultantes de violência e acidentes, bem como de doenças infecciosas como dengue, chagas, esquistossomose”.
No Brasil, a atenção primária à saúde continua sendo a forma mais eficaz de proporcionar maior acesso aos serviços de saúde. Embora o Brasil não tenha atingido a meta Alma-Ata de “saúde para todos” até o ano 2000, fez progressos significativos, embora ao longo de um caminho tortuoso. Hoje”, diz Tomassini, “o SUS funciona, mas não está operando em sua capacidade máxima porque há muitos obstáculos, como o conservadorismo e a política”. A falta de vontade política para ajudar as pessoas do meio rural causa problemas para o sistema de saúde”
Nas cidades, diz Tomassini, há um clima que favorece a prestação de um tratamento complexo e especializado”. “Há um duelo entre a rede hospitalar e a atenção primária à saúde”, diz, referindo-se a um legado do antigo sistema de saúde que permanece até hoje. Um dos maiores desafios, diz Tomassini, é ganhar a confiança das pessoas. Às vezes as pessoas viajam para áreas urbanas para receber tratamento que poderiam ter recebido das unidades de saúde primária nas suas áreas rurais.
“Temos aprendido muitas lições nos últimos 13 anos com a implementação do programa Saúde da Família”, diz de Sousa. “Aprendemos que é possível construir um novo modelo de saúde primária com os princípios de justiça e solidariedade, desde que haja vontade política para isso”
“Os serviços primários de saúde são fundamentais para o sucesso do SUS”, conclui Tomassini. “É através da atenção primária que podemos acabar com as filas de espera nos hospitais públicos e parar a espera por consultas médicas”. ■
Deixe uma resposta